segunda-feira, 29 de março de 2010

O (DES)PRESTÍGIO DO ELEITOR

Um dos personagens folclóricos mais marcantes de minha terra se chamava Cícero Pereira dos Santos. Pelo garboso nome, praticamente ninguém se recorda de quem se trata. Se eu me referi a Lulu Saliva, lá das bandas do Escalvado, filho de Mané José, um treiteiro (malandro na linguagem alto-parnaibana) sem malícia e sem crimes, com certeza se lembrará com um sorriso nos lábios.

Lulu já morreu, deixando mais triste nossa cidade. Era esperto nas respostas, gostava de posar de rico e valente, dava uns tombos de poucos trocados nos mais incautos e detinha uma rara inteligência em um físico deficiente de nascença. Nascido e criado nas margens do rio Parnaíba, onde a futura cidade de Alto Parnaíba teve sua primeira povoação, Luluzinho teve terras e perdeu tudo na ingenuidade do sertanejo que, quando metido a sabido, infelizmente perde o pouco que possui para os verdadeiramente espertos - os de paletó e gravata.

Mas, vamos voltar ao Lulu que mais interessa, de jeito traquino e lábia prodigiosa, daí o apelido de Lulu Saliva, bem posto por meus conterrâneos.

Lulu sabia ler e escrever, alfabetizado (com bela caligrafia) pela antiga e já esquecida (pelos poderes locais) professora municipal Conceição Lopes. Mesmo durante o regime militar, as eleições municipais não foram suspensas, havendo disputas acirradas entre os candidatos do MDB e Arena, os dois únicos partidos existentes e permitidos pela ditadura de 1964. 15 de novembro era o dia da eleição para prefeito e vereador. Corre o ano de 1976. A eleição se aproxima e as famílias tradicionais da política se digladiam; ofensas de lado a lado, dinheirama solta. Desudedith Lopes e Renan Soares disputam o pleito principal. Durante o longo dia da votação, os cabos eleitorais de ambos os candidatos correm atrás dos eleitores. Lulu é o mais arisco e o que mais explora - uma botina; uma muda de roupa (completa); um relógio; dez cruzeiros, enfim, tudo o que é possível e impossível dentro daquela realidade provinciana, Luluzinho pede incansável e sutilmente aos candidatos, já compremetido desde o início da campanha com cada qual, mesmo só possuindo o próprio voto. O horário do encerramento da votação se aproxima e nada de Cícero Pereira dos Santos exercer o direito ao voto. Um cabo eleitoral, já dando sinais de fadiga, cansaço e irritação, encontra Lulu andando ligeiro na praça principal e o segura pelo braço: você agora não me escapa, vamos votar. Sem qualquer inquietação, tranquilo e sereno, pouco se importando se o mundo se acabasse e nem um pouco acreditando em um lugar melhor com o resultado da eleição, Lulu disparou: ainda faltam vinte minutos. Só vou votar no último segundo, ou então perco o prestígio.

Com razão o saudoso Lulu. Terminada a eleição, o eleitor é esquecido, as promessas ficam no vazio, o prestígio desaparece O eleitorado de Alto Parnaíba continua desprestiado como d'antes, me dando uma vontade danada de sequer votar em outubro próximo.

Um comentário:

  1. Colega Décio Amaral,
    Uma delícia de crônica com Lulu Saliva. Na minha querida Matões, também lá nossos Salivas.

    Paulo Cruz Pereira

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